O guru do coração - Dean Ornish
O cardiologista que tem os Clinton e celebridades
de Hollywood como clientes diz que dieta, boas
amizades e afeto ajudam a viver mais
Eurípedes Alcântara, de Nova York
O cardiologista americano Dean Ornish, 44 anos, está a meio caminho entre as filosofias orientais e as modernas terapias e pesquisas do Ocidente. Por duas décadas ele amargou um certo ceticismo da comunidade científica, embora, prescrevendo apenas uma severa dieta vegetariana, meditação e exercícios leves, como os da ioga, ele tenha conseguido reverter doenças cardíacas e limpar bloqueios das coronárias de 90% de seus pacientes. Muitos reagem ao cabo de apenas três semanas de tratamento. "O infarto precoce pode ser evitado na imensa maioria das pessoas apenas com dieta e mudança para um estilo de vida mais tranqüilo", diz Ornish, que finalmente se fez aceitar pelos médicos tradicionais dos Estados Unidos. "As pesquisas com drogas para baixar o colesterol acabaram chegando agora às mesmas descobertas que fiz há vinte anos", diz ele. "Quando se reduz drasticamete a gordura dos alimentos, as artérias são desbloqueadas." Dois de seus livros (Salvando o Seu Coração e A Dieta de Salvando o Seu Coração, Editora Relume-Dumará) foram publicados no Brasil. Entre seus seguidores contam-se celebridades como o casal Bill e Hillary Clinton, Steven Jobs, presidente da indústria de computadores Apple, o financista Mike Milken, os atores Michael Douglas e Dustin Hoffman e as atrizes Carol Alt e Candice Bergen. Na semana passada, ele falou a VEJA antes de embarcar para o Rio de Janeiro, onde será uma das estrelas do Congresso Mundial de Cardiologia.
Veja — O deputado Luís Eduardo Magalhães, que morreu na semana passada, costumava se exercitar pelo menos uma vez por semana, andando cerca de 10 quilômetros em passo acelerado. Por que esse hábito não foi suficiente para salvar-lhe a vida?
Ornish — As pessoas que se exercitam esporadicamente cometem um erro pensando que por causa disso podem continuar fumando e comendo carnes gordurosas todos os dias. O exercício dá a falsa impressão de proteção quando não é combinado com outras mudanças de estilo de vida. Exercício ajuda, mas não é suficiente para garantir a boa saúde das coronárias. Soube que a morte do deputado causou uma comoção enorme no Brasil. Se alguma coisa boa se pode tirar de uma tragédia, ela poderia ser o aumento da consciência entre os brasileiros de que o coração precisa de cuidados para não surpreender. Não basta uma corridinha de fim de semana para que tudo se ajeite no organismo. A abordagem tem de ser mais integral, ou holística, como costumo chamá-la.
Veja — Qual a maneira mais eficiente de evitar um ataque cardíaco precoce?
Ornish — Mudar o estilo de vida. Não conheço nenhuma droga, nenhum recurso da medicina, inclusive as cirurgias, que seja um fator mais determinante da boa saúde do coração do que a mudança radical do modo de vida a que a imensa maioria das pessoas está habituada. Não se ensina isso na maior parte das faculdades, mas a sobrevivência saudável está intimamente ligada a fatores que por muitos anos consideramos do domínio das religiões ou dos gurus orientais. Refiro-me aos fatores subjetivos, como a meditação, a oração e a busca da intimidade, e aos prazeres da vida social. Recentemente, pesquisadores da Universidade do Texas fizeram duas simples perguntas a centenas de homens e mulheres que se preparavam para submeter-se a cirurgias cardíacas arriscadas. Os pesquisadores procuraram saber quem entre os pacientes considerava sua religião, não importava qual, uma fonte de segurança e conforto. Também quiseram saber quais pacientes eram membros de grupos ou associações com os quais se reuniam freqüentemente — uma igreja, um clube de boliche ou uma roda de pôquer. Seis meses depois da cirurgia, o grupo de pacientes que respondeu afirmativamente às duas questões acima apresentou um índice de sobrevivência cinco a sete vezes superior aos demais operados. Eu mesmo revi centenas de estudos semelhantes feitos nos Estados Unidos. Todos enfatizam a mesma coisa: o estilo de vida é um fator determinante não apenas da qualidade mas da extensão da vida.
Veja — Quer dizer que depois de uma boa feijoada ou de um gordo cheese burger basta uma oraçãozinha para que a gordura não mine a saúde?
Ornish — Não é isso, obviamente. Não estou defendendo a eficiência das curas tidas como milagrosas, nem aqueles pregadores que mandam seus fiéis colocarem as mãos sobre o rádio ou o televisor para receber vibrações curativas. O sujeito se arrisca mesmo é a levar um choque elétrico. O que estou dizendo, e não estou sozinho nisso, é que fatores antes relegados pela ciência médica estão sendo estudados com rigor e seus resultados são surpreendentes. A maioria dos cardiologistas americanos sabe, graças a estudos recentes, que pessoas deprimidas, solitárias e as que não constituíram família tendem a morrer prematuramente, não apenas do coração mas de todas as causas somadas, numa taxa três a cinco vezes maior do que as pessoas com relações sociais saudáveis. Obviamente, mesmo entre as pessoas de vida social normal, não existem milagres. Para diminuir os riscos ao coração é vital reduzir drasticamente a quantidade de gordura na dieta, não fumar e exercitar-se com harmonia pelo menos cinco dias por semana. Em nossa clínica temos obtido resultados muito melhores do que os das cirurgias e dos remédios somados, apenas treinando as pessoas para cultivarem melhores hábitos alimentares e de socialização. Com uma dieta de apenas 10% de gordura, muitas frutas, vegetais e grãos integrais, exercícios leves, controle do stress e sessões de meditação e orações conseguimos não apenas evitar doenças cardíacas como até reverter lesões e entupimentos nas artérias. Nossos resultados foram reproduzidos por diversos outros centros nos Estados Unidos, até mesmo por grupos que discordam da minha abordagem. Portanto, do ponto de vista científico está provado que se pode evitar e tratar a doença cardíaca apenas com dieta e mudança de hábitos.
Veja — O senhor já tentou descobrir se seu método funciona apenas com a dieta proposta, que é severíssima?
Ornish — Não acho que a dieta em si seja o bastante. Para reverter lesões cardíacas e desentupir artérias não se pode comer carne vermelha, nem frango, nem peixe. É uma dieta totalmente vegetariana. Ninguém suporta submeter-se a um regime desse apenas porque sabe racionalmente que a comida lhe fará bem. Se fosse assim, não existiriam fumantes educados. Qualquer adulto levemente informado sabe que o cigarro é um fator de risco para a saúde. Saber apenas não resolve. É preciso trabalhar com os pacientes em níveis muito mais profundos. Por isso a meditação e as orações são vitais. A novidade é que a ciência ocidental agora dá amparo a essa tese. Está provado que a meditação desacelera os processos biológicos e mentais e acalma as pessoas. Igualmente não existe mais dúvida entre os cardiologistas de que uma dieta com apenas 10% de gordura é capaz de limpar artérias e reverter doenças cardíacas. Isso ficou provado nos extensos e rigorosos estudos feitos pelos laboratórios que produzem drogas que baixam os níveis de colesterol no sangue. Quando eu propus essa tese há mais de vinte anos, ela era muito radical. Hoje os médicos consideram natural que se possa, em alguns casos, vencer doenças coronarianas já instaladas e prevenir a imensa maioria delas apenas com dietas e um estilo de vida mais manso.
Veja — Mas permanece a dúvida sobre se é possível mudar de vida tão radicalmente quanto o senhor propõe, não?
Ornish — Está provado que é possível. Eu e meus colegas fazemos isso todos os dias com centenas de pacientes. Dezenas de hospitais americanos têm equipes treinadas por nós obtendo ótimos resultados. Meia centena de planos e seguros de saúde já oferece a seus pacientes pagar uma estada na nossa clínica em vez de uma cirurgia de peito aberto. Os resultados da dieta em combinação com meditação são melhores do que os do bisturi. Pela primeira vez no Ocidente, temos a constatação científica de que qualquer pessoa pode evitar o infarto precoce e muitas já doentes podem curar-se com métodos que há duas décadas eram considerados alternativos. Agora se tem, graças a diversos estudos, uma medida clara dos danos que certos comportamentos impõem à saúde. Mulheres que se sentem isoladas têm chance três vezes e meia maior de morrer de câncer no seio ou no ovário ao longo de um período de dezessete anos do que as que se dizem amadas. Homens que declararam nas pesquisas que não se sentem amados pelas esposas apresentam angina num índice 50% mais elevado do que os maridos felizes. São pesquisas irrefutáveis.
Veja — O senhor acha que uma pessoa solitária, amarga, acostumada a se consolar numa bebidinha ou no cigarro pode ser convencida a se tornar vegetariana para evitar um possível futuro problema cardíaco?
Ornish — Se ela realmente quiser, garanto que as recompensas da meditação são gratificantes. Meditação é uma arma poderosa. Ao contrário do que se pensa comumente, meditar não é invenção oriental. Está presente praticamente em todas as culturas e religiões. Pode-se meditar em qualquer idioma, em qualquer credo. Mas, evidentemente, para transformar um fumante, ou alguém que se droga e abusa do álcool, numa pessoa que desfruta os benefícios da oração e da meditação dá trabalho. Nós utilizamos grupos de apoio que acabam desarmando as pessoas, desmontando as muralhas que elas armaram em torno da sua afetividade. Elas descobrem que, uma vez de volta ao equilíbrio emocional, não precisam de cigarro ou bebida. Descobrem que as necessidades humanas básicas não são apenas a comida e a bebida, mas o amor, a intimidade — não necessariamente o envolvimento romântico — e as conexões sociais. Concordo que é preciso método e muita dedicação para chegar a esse ponto. Mas nossa experiência com pacientes de todo tipo é uma prova de que vale a pena tentar. A meditação, a retomada da capacidade de amar e conviver em paz produzem no organismo uma recompensa química que é mais forte do que os remédios.
Veja — É verdade que o senhor modificou, a pedido dos Clinton, o cardápio da Casa Branca?
Ornish — Sim, a pedido de Bill e Hillary Clinton eu me reuni durante várias semanas com os chefs da residência oficial do governo americano e juntos traçamos uma linha de pratos em que a gordura foi substancialmente reduzida. Ainda hoje presto consultoria a eles nessa área. Claro que não fui tão radical a ponto de segurar o total de gordura em 10%, como faço na minha clínica, mesmo porque Bill e Hillary são saudáveis e não têm lesões cardíacas que precisem ser revertidas. Eles estão simplesmente se prevenindo contra futuros problemas de saúde, escolhendo uma alimentação balanceada. Posso assegurar que a comida que se serve hoje na Casa Branca é a menos gordurosa de toda sua história.
Veja — Seus críticos dizem que a dieta que o senhor propõe, com 70% de carboidratos, pode ser, a longo prazo, perigosa para o coração. O senhor leva essa questão em consideração?
Ornish — Sim, em tese a crítica é correta, mas ela se desmonta na prática. Claro que abusar dos carboidratos comendo biscoitos, bolos, colheradas de açúcar refinado e pão de farinha branca é danoso para a saúde. Esse tipo de comida joga instantaneamente para o alto o nível de açúcar e calorias no sangue. Com isso, força-se o pâncreas a produzir insulina e ela, por sua vez, acelera a conversão das calorias em gordura e triglicérides, ambos potencialmente perigosos para o coração. Na nossa dieta isso não acontece. O carboidrato é ingerido junto com quantidades de fibras dos grãos integrais. Eles são moléculas complexas, que não podem ser absorvidas rapidamente e acabam eliminadas. O efeito é oposto ao do carboidrato simples. Muitos diabéticos na nossa dieta voltam a ter níveis normais de açúcar no sangue e abandonam as injeções de insulina.
Veja — Por que os franceses têm índices de ataque cardíaco precoce muito menores que os americanos, embora comam mais gordura e bebam mais?
Ornish — Bem, a causa principal de morte prematura na França ainda é o ataque cardíaco. A taxa de mortalidade é menor do que nos Estados Unidos, mas o coração ainda mata muito nos países que adotam a chamada dieta mediterrânea. Do ponto de vista exclusivamente da dieta, a asiática, com seu baixo consumo de produtos animais, é mais saudável ainda do que a européia. Não acho que a diferença em favor dos europeus com relação aos americanos seja o vinho ou o patê de fígado de ganso. Acho que o diferencial está no estilo de vida. Na França e na Itália, um almoço é uma celebração de vida. Num dia de semana qualquer pode durar até três horas. As pessoas dão risadas, conversam gostosamente. É bem diferente de engolir um hambúrguer no drive-thru ou comer um pedaço de pizza sentado na calçada. Em muitos lugares da Europa, onde a taxa de ataque cardíaco é menor, ainda impera um estilo de vida mais ameno, em que as relações sociais são baseadas na cooperação e não na competição. Acredito que no interior do Brasil ainda seja assim também. Estou convencido de que fatores sociais, nesse caso, preponderam sobre a dieta para tornar a taxa de mortalidade por doença coronariana menor na Europa que nos Estados Unidos.
Fonte: Páginas Amarelas - veja 29/04/98